Desiderata e a Construção do Sujeito na Psicanálise: Um Caminho para a Saúde Mental
- Christina Guedes

- 2 de out. de 2024
- 3 min de leitura
O poema Desiderata, escrito por Max Ehrmann em 1927, é uma obra de inspiração para a busca de serenidade e equilíbrio interior. Com suas palavras simples e sábias, o poema oferece um guia para viver de forma harmoniosa, ressaltando a importância de cultivar a paz, a autocompaixão e a autenticidade. Ao olhar mais atentamente, podemos perceber como esses valores se entrelaçam com o processo de construção do sujeito na teoria psicanalítica e a promoção da saúde mental ao longo da vida.

Na psicanálise, a construção do sujeito é um processo complexo e dinâmico, que envolve a interação entre o inconsciente, as experiências de vida e a forma como lidamos com nossos desejos e conflitos internos. Para Freud, a constituição do sujeito ocorre a partir de nossas primeiras relações objetais — principalmente com figuras parentais — e se organiza em torno do manejo das pulsões e da formação do ego, id e superego. Já para autores como Lacan, a subjetividade é marcada pela entrada no campo da linguagem e pelas identificações que fazemos ao longo da vida. Assim, o sujeito psicanalítico não é algo fixo ou estático, mas está sempre em constante reconstrução.
O poema Desiderata ecoa essa perspectiva psicanalítica ao destacar a importância de estar em sintonia consigo mesmo e com o mundo. A frase "vá placidamente por entre o barulho e a pressa e lembre-se de quanta paz pode haver no silêncio" sugere a necessidade de se distanciar das exigências externas para ouvir a própria voz interior. Essa recomendação se aproxima da ideia de que o sujeito deve estar em contato com suas emoções e fantasias inconscientes, possibilitando uma autoexploração que leva a um maior autoconhecimento e, consequentemente, a uma melhor saúde mental.
Outro ponto de conexão entre o poema e a psicanálise é a noção de aceitação das próprias limitações e dos outros. Ehrmann nos lembra que "você é um filho do universo, não menos que as árvores e as estrelas; você tem o direito de estar aqui." Nesse trecho, podemos vislumbrar a valorização do sentimento de pertencimento e a aceitação de si mesmo como ser humano. Na teoria psicanalítica, especialmente em Winnicott, o conceito de "self verdadeiro" reflete a necessidade de se expressar de maneira autêntica, longe de máscaras sociais e expectativas. Assim, o processo de construção do sujeito envolve, entre outros aspectos, a reconciliação com suas vulnerabilidades e a possibilidade de viver com integridade e coerência, mesmo diante das imperfeições.
A busca pela harmonia nas relações interpessoais também é enfatizada em Desiderata e pode ser relacionada à ideia de transferência e contratransferência na prática psicanalítica. Quando o poema diz "evite as pessoas agressivas e turbulentas; elas são um tormento para o espírito", há um convite para que o sujeito proteja sua saúde mental, mantendo distâncias seguras de vínculos que provoquem angústia ou sentimentos de desvalorização. Na análise, a transferência pode emergir como uma repetição de padrões relacionais disfuncionais, e o processo de construção do sujeito inclui, portanto, a elaboração dessas relações para que novos modos de se vincular possam surgir.
Além disso, a postura de não se comparar aos outros, como Ehrmann sugere em "não se compare com os outros, pois sempre haverá pessoas superiores e inferiores a você", reflete um movimento em direção a uma aceitação genuína de quem somos, sem que nosso valor dependa de referenciais externos. Na psicanálise, esse é um ponto crucial, pois o sujeito precisa estar ciente de suas singularidades e resistir à tendência de se medir constantemente pelo desejo do Outro, como destaca Lacan.
Por fim, Desiderata nos lembra que "apesar de todas as suas falhas, é ainda um mundo bonito. Seja alegre. Esforce-se para ser feliz." A psicanálise não se propõe a eliminar o sofrimento, mas a permitir que o sujeito possa compreendê-lo, resignificá-lo e encontrar formas de viver que façam sentido, mesmo em meio às incertezas e imperfeições da existência. O cuidado com a saúde mental, assim, se torna uma jornada contínua, de construção de si, em busca de uma vida mais plena e autêntica.
Dessa forma, o poema de Ehrmann se alinha de maneira sutil, mas profunda, com a psicanálise, oferecendo um convite para a reflexão sobre a saúde mental como um processo de construção contínuo. A mensagem central de Desiderata é a de que, para viver em paz consigo e com os outros, é necessário um movimento constante de escuta interna e de reconciliação com nossas singularidades. Afinal, como nos diz o poema, "com todos os seus enganos, dissabores e sonhos desfeitos, este ainda é um mundo maravilhoso." E cuidar da nossa saúde mental é reconhecer esse fato e nos esforçarmos para construir um mundo interno tão acolhedor quanto aquele que desejamos para fora.
Christina Guedes
Psicanalista


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